Curadoria de delicadezas #2
Crônicas, reflexões e indicações sobre o tempo, silêncio e as belezas do Brasil.
Segunda-feira, feriado, depois de um fim de semana que começou com um feriado na sexta. Se você não acordou hoje a favor da semana de quatro dias, não sei se podemos ser amigos.
Por aqui esperamos que seu feriado tenha sido bom. Feriados como o da Páscoa, que envolvem tradições familiares e religiosas, podem ser deliciosos, cheio de boas comidas e a formação de boas memórias, mas nem sempre são confortáveis para todos. Essas datas podem fazer gritar alguns sentimentos silenciosos como o luto, a distância, as ausências.
As redes sociais nos inundam com o que parecem famílias perfeitas. Se esse não for seu caso, te aconselho a fazer um exercício e entender qual é a sua: se é uma parte menor do seu núcleo familiar de sangue, se são seus amigos, vizinhos, ou até se você verdadeiramente não liga pra essas datas e quer passar por elas como se não existissem - sempre bom lembrar que um domingo de páscoa é um dia com 24h como outro qualquer e você pode fazer dele o que quiser.
Por aqui, a maior parte das nossas famílias mora longe, então criamos um núcleo familiar que está sempre por perto: nossos amigos, e em datas como essas sempre fazemos uma grande celebração também da nossa amizade.
Como aprendi a escutar o silêncio, por Julio
Existe uma regra universal no rádio e você aprende ela muito rápido quando começa a trabalhar. No rádio não há silêncio. Por vários motivos. Se alguém que está ouvindo uma rádio sintonizar em uma frequência muda, logo vai mudar de estação. Também existe um motivo quase egoico por parte dos jornalistas. Se você deixa um branco no ar, no ao vivo, você não conseguiu segurar. Seja com improviso, seja com um roteiro escrito.
Os que me conhecem há mais tempo sabem que tive uma longa carreira no rádio. Comecei na Rádio Bandeirantes, onde fui produtor e repórter do Datena (um dia escrevo sobre isso), passei pela Rádio Estadão (hoje a querida Eldorado) e depois, Rádio Globo.

A redação de uma rádio costuma ser um lugar bem caótico e diferente de escritórios convencionais. Normalmente, algumas TVs ficam sintonizadas em vários canais. Uma na Globo, outra na Band, talvez na Globonews, e eventualmente algum canal de esporte. Essas TVs costumam ficar no mudo. Se algum assunto interessante aparece ali, ou a Globo dispara um plantão, a primeira pessoa que vê dá um cutucão no estagiário falando: “AUMENTA A TV!” Uma rodinha se forma em volta das telas e, a partir daí, a mágica da cobertura jornalística acontece.
Além disso, toda rádio tem uma caixa de som empoeirada tocando a frequência da emissora. Ela está sempre alta, para que todos ouçam. Quem está ali trabalhando não presta muita atenção no que está sendo falado. Cada um está tocando suas pautas com seus respectivos fones de ouvido. Mas se a rádio sai do ar por algum motivo, todo mundo para e olha pro estúdio. Somos treinados a ouvir o silêncio.
Quando fui trabalhar no mercado financeiro, o silêncio do escritório foi assustador. Talvez fosse trauma, já que estava convencionado a ligar o silêncio a algo ruim. Com o tempo, fui aprendendo a lidar com ele de uma forma mais positiva.
Fiz toda essa introdução para dizer que hoje tenho apreciado muito mais o silêncio. Até pouco tempo atrás, trabalhava ouvindo música o tempo todo. Hoje, uso a música como uma ferramenta de concentração, me transportando para aquele ambiente caótico da rádio, onde milhares de sons aconteciam ao mesmo tempo.
Agora, meu fone com cancelamento de ruído é meu melhor amigo. Não deixo nada tocando nele, só o ativo para silenciar tudo ao meu redor. A gente é tão estimulado o dia inteiro — acho que tenho controlado muito mais minha ansiedade com esse exercício de quietude forçada.
Nos feriados, a cidade de São Paulo silenciosa me empolga. Criei até um índice de silêncio de feriados, baseado no número de helicópteros que pousam no heliponto aqui perto de casa. Na sexta-feira, é um vai-e-vem de helicópteros maluco: os milionários da cidade saem para suas casas na praia ou no campo. No último dia de folga, na parte da tarde, esse povo todo volta. Quanto mais helicópteros pousam, mais silêncio eu tenho.
No próximo feriado, escute o silêncio. Nem que seja de madrugada, quando as coisas estão mais tranquilas. O silêncio é bom.
PS: Também tenho cuidado da minha audição, afinal, quero que o silêncio seja seletivo — e não compulsório. No rádio, usava o fone de ouvido no volume máximo dentro do estúdio. Hoje, sinto que perdi um pouco da audição. Agora, para ir a lugares barulhentos, só com protetor auricular.
Tempo Rei, por Piera
Semana passada fomos ao show de despedida de Gilberto Gil. A turnê Tempo Rei, que tem o mesmo nome da música de 1979, faz parte das últimas apresentações do cantor. É a entrada dele no pedido de aposentadoria.
Eu amo muito o senhor Gilberto. Mesmo nunca tendo o conhecido pessoalmente e ele não fazendo ideia de quem eu sou, tenho uma gratidão imensa por ele. A música Palco, foi uma das minhas maiores ferramentas de sobrevivência durante a pandemia, ela era a primeira música da playlist que eu usava para preencher o silêncio da casa, e a música que eu mais dancei e chorei sozinha naqueles longos dias.
Anos depois, virou a música que abriu a pista do nosso casamento. Ressignificar.
Aqui em casa, e também em uma das nossas primeiras newsletters, falamos muito sobre esse direito à aposentadoria dos grandes artistas. E nada me faz mais feliz do que ir na turnê de despedida de Gil, Caetano e Bethania. Esse último ato de amor para o público e esse último momento de receber esse amor que os alimentou por tanto tempo.
Quando Gil nomeia sua turnê Tempo Rei é quase como se ele voltasse para sua oração escrita em 1979 e agradecesse a ela por ter o trazido até aqui. Sua canção é um pedido de compaixão, sabedoria, maturidade ao tempo. E o tempo o atendeu, e talvez tenha o atendido tão bem porque lá mesmo, nessa oração, Gil reconhece a nossa impotência diante do tão poderoso Rei. Talvez esse seja o segredo, saber da nossa impotência: saber que não existe uma competição com ele, só parceria.
Esse texto não tem nenhuma grande conclusão, ando por aqui muita reflexiva sobre o tempo, como ser tão amiga dele quanto seu Gilberto foi e é.
O silêncio poético do pôr do sol francês, por Julio
Preciso que você dê play em Love Like a Sunset, da minha banda preferida, Phoenix, enquanto lê esse texto. De preferência, de fone de ouvido.
Quero falar sobre essa música que me remete muito ao vazio e ao silêncio. Essa é uma faixa do disco Wolfgang Amadeus Phoenix, de 2009. É o mesmo álbum que tem 1901 e Lisztomania, os maiores sucessos da banda.
Eles são de Versailles (sim, a cidade do palácio) e cresceram juntos por ali. Um dos guitarristas, o Laurent Brancowitz, tinha uma banda chamada Darlin’ com dois outros amigos, Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo, que mais tarde formariam o Daft Punk. Quando essa banda acabou, ele se juntou a Christian Mazzalai (guitarra), Deck d’Arcy (baixo) e Thomas Mars (vocal — e marido da Sofia Coppola) para formar o Phoenix — banda que, assim como os amigos robóticos, também transformaria o pop francês.
E essa canção, Love Like a Sunset, me remete muito ao silêncio. Ela é dividida em duas partes: a primeira é uma construção instrumental e a segunda, uma conclusão lírica. Segundo eles, ao juntar isso ao crescimento harmônico, fazem uma transição do abstrato para o concreto.
Outra referência deles eram as viagens de carro entre Versailles e Paris, principalmente pelos túneis. Faz sentido.
A música, que demorou quase dois anos para ser finalizada, foi composta durante um retiro criativo em Montmartre, num estúdio com vista para o céu parisiense. Eles queriam traduzir uma ideia visual em música — como se o pôr do sol tivesse uma frequência própria.
O silêncio está lá o tempo todo, entre as camadas sonoras. A repetição suave, quase hipnótica, vai construindo esse clima meditativo que parece colocar tudo em suspensão.
A segunda parte da canção entra com a voz do Thomas quase como um sussurro. Ele canta “Love like a sunset” como quem reza ou entoa um mantra. É uma letra mínima para um sentimento imenso.
Talvez seja isso que me pega tanto: a música consegue ser intensa e calma ao mesmo tempo. E é um lembrete bonito de que nem tudo precisa ser preenchido. Às vezes, o que fica em branco também tem valor.
No fim, Love Like a Sunset é um convite pra respirar.
Usei como fonte esse livro maravilhoso sobre a banda, que precisa ser importado mas vale cada centavo.
Também tem esse documentário faixa a faixa do disco:
Curadoria de Newsletters, por Piera
as boas notícias da catita - é sempre uma notícia boa receber qualquer coisa da Catita, seja uma mensagem de texto ou um like no Instagram. Mas receber a newsletter dela é um deleite, um convite, uma viagem gostosa. Catita é dessas pessoas que pensam gostoso, sem medo. E quando dividem com a gente, vem daquele jeito que com certeza muda o nosso rumo. Assina e depois conta pra gente.
vai ter - se você é nosso assinante de BH, ou está planejando uma viagem pra lá, vale a pena dar um check na vai ter. Elas fazem uma ótima curadoria de lugares e rolês que vão ter pra você não perder.
propaganda não é isso aí - semanalmente o Lucas faz reflexões sobre o mundo do trabalho na indústria da publicidade, ele traz várias reflexões super interessantes, e muitas vezes doloridas, pra quem vive tudo isso aí.
Limpando o olhar e o feed, por Piera
Karla Brights é uma das minhas fotografas preferidas dessa geração. Ela é uma retratista dessas que tira foto como quem escreve um texto. As imagens feitas por Karla contam tanta história que não precisam de legenda.
Vale rolar o feed dela e se encantar como eu me encanto a cada publicação.
No offline - por Piera
Outro fotografo dos preferidos, mas esse de uma geração anterior, é o Luiz Braga.
Luiz Braga é um fotografo paraense, que tem um extenso trabalho com a cultura visual amazônica. Cada fotografia dele faz a gente entender a intensidade da região, que tem tantas cores marcantes, como em suas fotos.
Se você estiver em São Paulo vale passar no Instituo Moreira Sales e conferir de perto essa retrospectiva dos 50 anos de carreira com 258 fotografias – 190 delas inéditas.
Se você ainda não seguiu minha dica de se embrenhar no Pará, pode ser o empurrãozinho que estava faltando.
Amo a Newsletter Mergulho. E também as fotos do Monet. Nessa dá para ver nitidamente que ele estava chateado com o cone...
Adorei! E amei essa música do Phoenix que eu não tinha ouvido. Btw, sobre silêncio, eu recomendo demais a leitura do 'Quantum Listening', da Pauline Oliveros (e a intro foi escrita pela Laurie Anderson <3). É um pequeno tesouro.