O primeiro mergulho é no Pará
Brega, descanso, macumba, jambu e cerâmicas - tudo que vivemos na primeira semana do ano
First things first
Como essa é a primeira edição, achamos válido usar esse espaço para dizer que é uma felicidade imensa poder dividir esse mergulho com você e te preparar para o que vem por aí.
Semanalmente vamos trazer pra cá os temas que debatemos ao longo dos dias, nossas obsessões do momento e reflexões sobre os mais diversos temas, além de curadorias, indicações e fotos. Se sentirmos que vale aprofundar em um assunto, vamos gravar um podcast (dois podcasters escrevendo uma newsletter, né…).
Nesta edição, não estranhe se um cheiro de patchouli te invadir ou se um gosto de jambu tremer sua boca, é uma edição toda dedicada a Belém, o destino da nossa última viagem, onde mergulhamos na cultura local e voltamos completamente apaixonados.
Bom mergulho e não esquece que tudo isso só fica mais incrível se você participar, então comenta, manda amor ou conta o que você não gostou, o inbox tá aberto pra isso.
Só o Brega Cura - por Piera
Comprei um boné em Belém com essa frase que eu poderia tatuar para não esquecer... vem aí? Quem sabe.
Chegar onde, pra mim, é a terra do brega, tem sempre um poder curativo, e anualmente eu arranjo uma dor pra curar lá. Já curei coração partido, emprego perdido e pé machucado com os banhos feitos pelas erveiras do ver-o-peso, esse ano fui curar o cansaço de um ano eleitoral, onde eu trabalhei em campanha política, militei de graça, mudei de casa, tudo isso enquanto mil freelas e mil tretas.
Eu bem sei que o bonde do burnoutinho passou o rodo e imagino que, mesmo que os motivos sejam diferentes, em algum grau você se identifique com esse cansaço que 2022 trouxe.
Pouco antes de embarcar para meu refúgio sabor tucupi, participei da realização e lançamento do report "Declaração do Direitos Descansistas" (6510 e Subversiva), planejei meu descanso falando sobre descanso, postando sobre descanso, lendo sobre descanso. E durante a formulação desse report-desejo-manifesto (leia) entendi que quase sempre vou até o limite do meu cansaço, até machucar para precisar de cura e ter a desculpa para correr para lugares como Belém, quase como se eu falasse "Tá vendo, tem um machucado aqui, agora eu preciso parar e me curar, você não vai poder me julgar por isso". Toda essa reflexão me trouxe minha resolução de ano novo, que vim dividir aqui por que, quem sabe falando em voz alta (ou escrita), dividindo com outras pessoas, eu tenha um pouco de vergonha na cara de quebrar, que é:
Que eu não precise chegar ao limite, que eu não ache que eu precise merecer descansar, que eu leve tão a sério meu descanso quanto eu levo os motivos que me cansam, que eu escute um brega sem precisar estar em carne viva pra ele curar.
Que inspire resoluções carinhosas por aí.
Tomei uma surra de jambu - por Julião
Afogado em tucupi, escrevo esse texto pra dizer que estou completamente apaixonado. Minha sensação preferida na vida é provar algo com um sabor que nunca tinha passado nem perto da minha boca - e a comida Paraense entregou tudo. Eu já tinha comido muita coisa com tucupi aqui em São Paulo, tomado cachaça de jambu, consumo açaí com uma certa frequência (aquele com granola e fruta picada). Tudo muito distante do que tinha lá. O estado do Pará pegou um ramo de chicória e me deu uma surra, berrando "Égua, isso que você come não é comida paraense".
Portanto, segue um breve resumo daquilo que me encantou nessa viagem ao Pará:
Tucupi, o ouro líquido: Extraído da mandioca, é o que dá graça aos pratos. O sabor do tucupi é um soco na cara, não dá pra esperar o que vem. A acidez vem primeiro, fazendo você arregalar os olhos - depois, o salgado, que faz você ficar feliz e no fim, um sabor que abraça sua língua e faz você querer mais. Comi tucupi em vários preparos - na Caldeirada Paraense (com peixe, camarão e vegetais), no arroz com jambu (em que ele é acrescentado ainda no cozimento), no risoto, na pimenta e até reduzido pra mergulhar o pastel. Aqui em São Paulo é fácil de achar, a Helena Rizzo do Maní fez uma linha de produtos e sei que o tucupi é um deles. Tem em vários mercados.
Tudo com Jambu: Era jambu no pastel, na caldeirada, no risoto, na pimenta, até hambúrguer com jambu eu comi. O Jambu é uma planta bem verdinha. Quando cozida, fica com aspecto parecido com espinafre ou escarola - e quando você coloca na boca, o sabor inicial é bem diferente de outras comidas. Cinco segundos depois, sua boca começa a ficar dormente, ou como diria Dona Onete - TREME. A gente conhece muito aqui em São Paulo por causa da cachaça - que diga-se de passagem, é MUITO mais forte lá do que aqui. Deu um calor danado. Quem vier em casa vai poder degustar - convidem-se.
O orgasmo congelado - sorvete da Cairu: Deixei minha parte preferida para o final. A Cairu é o orgulho do Paraense - todo taxista fala "você já foi lá? foi eleita a melhor sorveteria do mundo". Mesmo se não tivesse ganhado o prêmio, eu elegeria como patrimônio gastronômico brasileiro. O sorvete de Bacuri, fruta amazônica, é uma obra prima. Cupuaçu, tapioca com açaí, castanha do pará, murucí, uxi. Vale ir e encher o saco dos atendentes para provar todos os sabores e, no final, escolher sempre Bacuri. Infelizmente, é bem difícil (quase impossível) de achar em São Paulo - ainda estou nessa cruzada e, se encontrar, aviso aqui.
Menções honrosas: Filhote, o peixe que todo mundo come, com sabor suave e textura fenomenal; Açaí, que não é doce como da OakBerry e ganhou meu coração. É como se você estivesse tomando café sem açúcar, um amargo gostoso e textura aveludada. Eu adocei um pouco e misturei com tapioca, ficou ótimo. Os paraenses comem assim ou com farinha.
Quem vier em casa vai poder provar muita coisa - trouxemos nosso isopor lotado de delícias. É só aparecer.
Ah, e bom apetite.
Como mergulhar no ver-o-peso - por Piera
Para quem não sabe o que é o ver-o-peso uma breve introdução powered by Wikipedia aqui. Dito isso, acesse aqui o instagram da divina e maravilhosa fotógrafa Belenense Nay Jinknss que é sem dúvidas um mergulho profundo na cidade toda mas o mais especial é no mercado a margem do Rio Guajará (meu video preferido e assistido milhares de vezes é esse aqui).
Agora, que a introdução textual e visual foi dada, e você provavelmente já entendeu a grandeza desse lugar, vamos às minhas recomendações de como nadar de braçada nesse imenso universo:
Olhos, olfato e peito aguçados. Você vai ver as mais diversas belezas, nas pessoas, nas frutas e nas cores que você nem sabia que existiam. Você vai sentir cheiros, nem todos são confortáveis, é verdade, mas o cheiro do patchouli e da priprioca (o cheiro do Pará) compensa tudo ou muita coisa. Abre o peito pras erveiras, quando uma delas te perguntar o que se passa aí dentro, conta sem medo. Elas são os Padres, e o veropa é o confessionário, mas ao invés de mandar rezar ave maria, vão te entregar um bom banho que passa tudo, ou muita coisa.
Do mais, receba o que o ver-o-peso tem pra te entregar, deixa por lá o que precisa parar de carregar e traz uma garrafinha de afasta ex praquela amiga que tá precisada.
O barro que conta história, por Julião
Quem me conhece um pouquinho sabe que sou altamente suscetível a ficar obcecado por assuntos de tempos em tempos. Acho que é dentro da arte onde eu mais me vejo imerso.
Desembarcamos em Belém e já comecei a vasculhar tudo. A arte de povos que viveram no Marajó foi o que mais me fisgou - Piera já não aguenta mais ver fotos de urnas marajoaras ou saber alguma curiosidade aleatória sobre o povo que habitou o norte do Pará (mentira, ela adora isso também).
O povo marajoara é um dos primeiros que habitou o que hoje entendemos como Brasil. Como eles chegaram ao norte do Pará é complexo, mas resumindo bem, aqueles que se assentaram na Ilha do Marajó estavam com a primeira leva migratória de nativos que veio da Ásia e desceu pela América do Norte e Central. Chegando na América do Sul, parte rumou para os Andes e outra parte ocupou o norte brasileiro. Os primeiros registros arqueológicos de ocupação humana datam do ano 1000 AC mas os principais achados estão entre 400AC e 1600DC.
A Ilha do Marajó oferecia segurança alimentar - fartura de peixes e pequenos animais para caça, açaí e outras sementes. Também era muito farta em argila, principalmente com o baixar das marés e períodos de seca - e isso alimentou a arte marajoara, que via ali a matéria prima para as peças tão lindas que conhecemos hoje.
As maiores, que estão expostas em museus do mundo todo (inclusive no MASP, lá no fundo da sala do acervo fixo), eram urnas funerárias, cheias de pinturas e esculturas em alto relevo, todas lotadas de simbologia. Tangas, utensílios do dia-dia, ferramentas também são bem comuns.
Acontece que muita, mas muita coisa mesmo ainda não foi encontrada. São poucos os sítios arqueológicos perto da magnitude de história enterrada por alí - e muitos objetos são garimpados para coleções particulares - itens que ajudariam a contar a história do povo que viveu ali. Ouvi histórias de turistas que trocam esses achados por fardos de cerveja ou pequenas quantias de dinheiro… e assim, a memória do que pode ser uma das primeiras civilizações que habitou nosso país, vira decoração.
Artesãos locais tentam manter a história viva, fazendo réplicas de cerâmicas da época e versões modernas para venda turística. Estudam livros, fotos e observam as obras originais para replicar tudo com muito carinho e respeito. Visitamos a olaria do Anísio, artesão que morreu nos últimos anos, mas deixou seu legado - ficamos horas vendo peças serem moldadas e queimadas e ouvindo histórias de Luiz Otávio, que trabalha com isso há 40 anos. O instagram deles é esse aqui.
Nas minhas pesquisas, achei muitos bons artigos e muitos registros fotográficos de itens espalhados pelo mundo. Comprei um livro bem interessante que deve chegar nos próximos dias em casa: "Herança - a expressão visual do brasileiro antes da influência do europeu", editado em 1984 pelas Empresas Dow.
Recomendo também o vídeo sobre o povo Marajoara do canal Ancient Americas, que conta a história dos povos que habitaram e ainda habitam todas américas.
E da próxima vez que for ao MASP, perca cinco minutos na urna marajoara lá no fundo da sala, vai valer a pena.
Curadoria de delicadezas - por Piera
É algo que eu faço no meu instagram toda semana, um compilado de coisas que me tocam e eu espalho para pulsar por outros peitos. Essa semana uma curadoria especial made in Belém, espero que pulse por aí:
Letras que flutuam - projeto que virou livro, de Sâmia Batista e Fernanda Martins, com indicação ao Prêmio Jabuti. É um mapeamento dos abridores de letras da Amazônia, que são os artistas que escrevem nomes e frases nos barcos, uma arte flutuante, que fez meu coração disparar tanto que em breve vai ter uma na coleção de casa.
Iacitatá - Se você tiver o prazer de ir até lá um dia, espero que a Tainá Marajoara esteja por lá pra te receber e explicar que aquele espaço não é um restaurante, mas sim um ponto de cultura alimentar. Um lugar que trata comida como bem cultural, que entende que cozinhar é um rito que envolve ancestralidade e territorialidade. Vale a visita virtual para aguçar a vontade de estar por lá um dia.
Música - A música no Pará é um tema à parte, do brega ao carimbó é um vasto e rico universo que um dia vai ganhar uma newsletter dedicada, mas hoje eu vim indicar uma música especial, Bora Sair, da Malu Gadelha com participação especial do baixo maravilhoso de Rafa Lobato, minha amiga pessoal, baixista e paraense com o égua mais gostoso do mundo. Solta o play e remexe tudo.
Amei a News, as fotos da viagem, vocês são lindos demais!
Que abracinho esse folhete <3 quase deu pra me sentir lá, exceto pela falta de uma erveira </3 mas pra compensar vou tomar um cairu de castanha do pará com bacuri e fazer um mercadinho no quintal paraense :D