Fé na festa, festa na fé
Yemanjá, Festival de Verão, Mercado de São Joaquim e uma reflexão sobre arte
Voltamos com a segunda parte de Salvador. Axé!
Fé na festa - por Piera
Como eu disse no final da última edição (se não leu, corre aqui), Salvador está em festa. Eu já fui para muitos lugares que celebram o verão, desses que por onde você anda tem algo que beira uma festa, sem motivo aparente.
Mas Salvador leva esse conceito para outro patamar, é quase como se todas as pessoas que ali estão, no primeiro dia do verão, recebessem um memorando, um guia, uma aula de como celebrar e contagiar quem está em volta. Esse ano, tudo isso está mais especial. É o primeiro ano, depois que aprendemos na prática o que é uma pandemia, que várias celebrações tradicionais da cidade puderam voltar com toda sua força. Em dezembro a festa de Iansã, o Ano novo, em janeiro a Lavagem do Bonfim e o Festival de Verão.
Infelizmente não consegui estar em todas as festas que voltaram, ou ainda bem, não sei estaria viva escrevendo essa newsletter se tivesse me entregado a todas elas. Mas a uma eu me entreguei, eu e a Piera adolescente: o Festival de Verão.
Não sei a sua idade, mas eu fui uma adolescente nos anos 2000, isso quer dizer que eu usei primeiro a moda que hoje as adolescentes estão revisitando e chamando de Y2K, assistia MTV, fui à shows do Charlie Brown Jr. do Raimundos e também frequentei algumas micaretas. Uma coisa que não tinha nos anos 2000 era coerência, a gente usava calça de cintura baixa e pagava pra alguém deixar nossa sobrancelha horrorosa.
E no meio de tudo isso tinha o Festival de Verão de Salvador, mostrando toda mistura da época, com os hits do axé baiano, Los Hermanos, LS Jack, Bruno e Marrone e até o rapper Akon dividindo um palco com a Claudia Leitte, ou seja, um grande suquinho de aleatoriedades, tudo que o brasileiro ama. E eu, uma adolescente do interior de São Paulo, daria minha coleção de tênis Keds para estar ali.
Esse ano eu fui, e fui tão feliz quanto imaginei que seria. A estrutura estava impecável, tudo funcionou muito bem, do fluxo de entrada e saída aos bares e a temperatura da cerveja. Os palcos ficavam lado a lado e os shows revezavam entre um e outro, e o formato foi dos melhores e menos cansativos que já fui. Tudo isso são observações da Piera de 34 anos, a Piera de 17 quer mesmo dizer que o line up foi impecável, sem dúvidas o melhor de todos os festivais recentes.
Assisti com meus olhos, corpo e alma um Gilberto Gil entregue ao palco trazendo junto parte de sua imensa prole e também seu amigo de uma vida toda, Caetano. Olhei para o céu diversas vezes durante o show para agradecer que os dois estavam ali e chorei quando, emocionados, homenagearam Gal. Ver a mistura de gerações acontecer foi também uma das partes que mais me fizeram vibrar. Carlinhos Brown chamou Atooxxá, Margareth Menezes teve um show digno de posse ministerial, convidando as novas potências Majur e Larissa Luz (e vou te dizer, cantar "eu falei Faraóóóóóó" em Salvador tem sua magia). Baiana System chamou a maior orquestra do Brasil, o Olodum, e foi a maior catarse coletiva recente que eu participei. E, finalmente, revisitei a fase micareteira e vibrei com Bel Marques e Ivete Sangalo, tirando o pé do chão e possivelmente a lombar do lugar, que voltou rapidinho pra ouvir Léo Santana com a música do verão que, eu tenho certeza, está grudada na sua cabeça e se não está vem deslizando.
Se algum dia você perder a fé na festa, passe um verão ou pelo menos uns dias em Salvador, garanto a fé de volta em três batuques.
Como mergulhar no Mercado de São Joaquim - por Julião
Na nossa newsletter de estreia sobre Belém, a Piera falou bastante sobre o Ver-o-peso, mercado da capital paraense: “Olhos, olfato e peito aguçados. Você vai ver as mais diversas belezas, nas pessoas, nas frutas e nas cores que você nem sabia que existiam. Você vai sentir cheiros, nem todos são confortáveis, é verdade, mas o cheiro do patchouli e da priprioca (o cheiro do Pará) compensa tudo ou muita coisa”.
Hoje chegou a minha vez de escrever, dessa vez, sobre o Mercado de São Joaquim, em Salvador - onde os sagrados se encontram. O alimento sagrado e o sagrado alimento.
Como disse Piera, com olhos, olfato e peito aguçados. O cheiro do patchouli segue lá, mas se mistura com o camarão seco, arruda e pimenta. E alfazema, muita alfazema, para minha felicidade. Alfazema é lavanda, mas é diferente. Eu, como grande contribuinte para o sucesso de produtos com essa essência, me sinto em casa.
Corredores de ordem não tão lógica formam o labirinto sensorial baiano. Pra mim, arte é sagrada e os artesãos estão lá, em algum canto que não saberia explicar como chegar. Nos perdemos algumas vezes… em cestos e balaios, leques, cumbucas e travessas esculpidas em madeira, colheres de pau talhadas com perfeição e esmero. Encontramos o caminho “do nada”, já de sacolas cheias, fisgados pelo cheiro da alfazema. Piera faz uma parada estratégica para comprar incensos, ervas, água de flor de laranjeira e uma imagem de Iansã, que hoje protege a casa do alto de uma prateleira na sala.
Para oferendar, lá você encontra tudo, e mãe de santo tem prioridade no atendimento. Os balaios com flores e frutas banhados na alfazema saem de lá antes de serem entregues ao mar. As guias, entregues aos filhos, também saem de lá.
A minha esperança era comprar alguns utensílios de cozinha, pratos e cumbucas de ferro, panelas. Os preços eram ótimos. Uma mala também seria útil, pois as bagagens de mão já não eram suficientes para o estoque que montamos.
Continuamos perambulando, tentando chegar a um restaurante ou bar para comprar uma água. É uma caminhada longa, cercada pelos dois lados de barracas. Os sons se misturam em camadas. A música nova do Leo Santana toca, mas consigo ouvir Barões da Pisadinha ao fundo e um burburinho constante.
A luz baixa e a euforia de estar lá não nos deixa ver onde estamos entrando: o corredor das carnes - que é completamente diferente do frigorífico do Santa Luzia, para deixar claro. O cheiro que entra pelo nariz é um chute no saco. Seria uma ótima oportunidade pra procurar a minha carne de fumeiro, mas não tinha como. Olhamos pra baixo para focar e apertamos o passo - somos ultrapassados por um vira-lata caramelo pouco maior que o Monet com um punhado de tripas na boca - o lanche da tarde. A saída veio com a luz no final do corredor. Nunca ficamos tão felizes em encontrar um vendedor de quiabo com piseiro tocando no radinho.
O desespero dá lugar ao riso (gargalhadas, no caso da Piera). Passamos em frente, sem entrar, na galeria que Vik Muniz abriu há pouco tempo. Já tínhamos sido abençoados pela arte do mercado.



Festa na fé - por Piera
Viver em festa é um ato de fé.
Acreditar que todas as coisas boas da vida merecem ser celebradas, que cada nova fase merece um rito de passagem e que muitas vezes a cura de uma dor está no coletivo vibrando junto. É essa a minha fé.
Muitas das comemorações populares do Brasil são relacionadas a alguma crença, são festas de santos, orixás, para agradecer e pedir por milagres. Em todas essas festas, exercemos a maior especialidade do brasileiro, unir o sagrado e o profano, fazer com que eles se complementam de forma quase que um não existe sem o outro. O carnaval por exemplo acontece pautado pelos 40 dias que antecedem a páscoa, é a festa da carne antes dos dias de privação. Não tenho qualquer crença à privação e culpa católica, mas a parte da festa sempre me interessou muito.
No dia 02 de Fevereiro, em Salvador, acontece a Festa de Yemanjá. Estar lá nessa data tão potente foi sem dúvidas algo que me deixou ainda mais conectada com a minha fé. Da parte sagrada posso te dar algumas dicas: chegue cedo, é bonito ver a alvorada, os cortejos chegando, as mães de santo carregando seus balaios com suas oferendas à Rainha do Mar; leve rosas brancas, não coloque nada que não seja de matéria orgânica no mar, como espelhos, brincos, colares, nada disso deve entrar; use roupas claras e leves, no verão de Salvador o sol das 7 da manhã tem a sensação de meio dia, e por isso mesmo use protetor solar.
Uma dica que carrego no peito, dada por Mãe Denise que me recebe tão bem como sua filha de axé, é agradecer. Agradeça muito mais do que pede e quando pedir, peça com intenção, vale pra vida, vale para o dia de Yemanjá.
Além da matéria não orgânica no mar, mais uma dica para quem quer não só fazer parte da festa, mas também registrá-la é: não atrapalhe. Além dos devotos, muitas pessoas estão ali pelo interesse de fazer registros potentes que a devoção aos Orixás proporciona, mas lembre-se que aquilo não é uma performance, é uma celebração de fé. E se você está lá registrando, postando, ganhando engajamento com uma fé tão atacada a todo momento, lembre-se também de que, ao tirar algo dessas pessoas, as fotos, você deve carregar uma obrigação, a de não atacá-las, e defendê-las em situações de ataque à sua fé.



Sobre o profano, é, como sempre, delicioso, ponto. Beba água, celular na doleira e aproveite tudo que a carne tem a oferecer.
Comentário do Julião
O número de fotógrafos na festa de Yemanjá assustou um pouco. Acho que, na verdade, mais a intromissão, em um momento de fé e conexão. Era um negócio meio paparazzi, câmera na cara. Levei todo meu equipamento para documentar a festa e senti que só existe uma forma certa de fazer: com respeito, de longe, camuflado. Eu considero uma regra básica não interferir com o objeto fotografado, principalmente ali.
A Mãe Denise nos convidou para ir no barco dela, dois dias depois da Festa de Yemanjá, para entregar as oferendas e permitiu que eu fotografasse. Nossa única interação foi quando ela pediu pra eu beijar uma rosa antes dela oferecer à Rainha do Mar. As imagens ficaram lindas e a primeira coisa que quis fazer foi enviar pra ela. A resposta me chamou atenção. Primeiro, que ela ficou muito feliz, mas depois, com o desabafo: “As pessoas fotografam e nunca voltam com as fotos.”
A gente vai lá, tira, e não devolve.
Logo a gente volta, com fotos impressas, para serem colocadas nas paredes do terreiro.




Taxidermia é arte? - por Julião
Arte é um negócio muito pessoal. O que bate aqui, pode não bater aí, você pode gostar mais de fotografia e eu de pintura, ou ao contrário. Sinceramente, essa é a graça da arte.
Tenho um querido amigo artista plástico e digital talentosíssimo, o Robson Cristo. Trabalhamos por anos juntos e a pauta do nosso café da manhã, todos os dias, era se taxidermia é arte. Discutíamos não para chegar em uma resposta ou definição, mas pelo tesão em criar novas hipóteses sobre o assunto.
Algumas obras extrapolam o gosto, não tem discussão. Por exemplo, a ninféias do Monet no Museu Orangerie, em Paris. Você entra naquela sala e se sente em um templo que foi, literalmente, projetado pelo pintor para que a incidência da luz vinda da clarabóia no teto melhorasse a observação das obras ali expostas. Você escuta o silêncio na sala, que diz muito. É quase como se fosse um velório, não por luto, mas por respeito ao ambiente. Você vê pessoas emocionadas, estudantes se aprofundando na técnica de cada uma das oito enormes pinturas.
São muitos os elos na cadeia da arte. Artistas, curadores, críticos e especialistas, marchands. Todos muito importantes. Hoje venho apresentar um amigo lá de Salvador, o Geo Rocha, dono da Tempo Arte Popular, que é muito mais que uma loja em Santo Antônio Além do Carmo. O Geo tem esse talento de escolher e curar obras unânimes, que não se discutem. Você entra na casinha clássica restaurada e se sente num templo - como no Orangerie - mas ao invés do silêncio, conversas deliciosas e carinhosas sobre a história de cada obra, de cada artista exposto ali.
Sem preguiça, Geo Rocha sobe em sua 4x4 e se enfia pelos cantos do norte e nordeste. Esse espírito curioso faz com que ele encontre os mais talentosos ceramistas do recôncavo, os artesãos mais incríveis da Ilha do Ferro (essa viagem vem aí). É cerâmica, ferro, madeira, pedra, tecido. Até tijolo vira arte lá (trouxemos três aqui pra casa). E essa é a graça.
Tudo é vendido, e isso é muito importante. A maioria desses artistas não trabalha na mesma lógica mercadológica que nós, afinal, a arte não é feita inicialmente com cunho econômico. É pra suprir uma inquietação no peito, que só pode ser resolvida com cor e forma. E é exatamente por isso que o Geo é importante. Ele é esse interlocutor.
Se o espaço na mala não der, você pode comprar e pedir o envio, que é super rápido. Arrematamos um Megafone enorme do Heitor, que veio por correio e chegou perfeito.
Ele envia pro mundo todo. Recomendo fortemente ir na loja lá em Salvador, mas caso a ansiedade não permita esperar a próxima viagem, tem o site também, que é esse aqui.
Um beijo, Geo! E até a próxima.




Comenta aí: taxidermia é arte?
Ahhhhh tão lindo tudo. Saudade de vcs e do calor humano do Brasil.